Escrita criativa e trabalho acadêmico
 



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Escrita criativa e trabalho acadêmico

Cinthia Dalla Valle em entrevista com Stela Rates


Existem muitos escritores que são também professores ou pesquisadores e que acabam seguindo a carreira acadêmica ao longo da sua trajetória. Dentro deste universo, a rotina da escrita é uma constante através de artigos, teses e trabalhos de conclusão.

Stela Rates é farmacêutica, doutora em psicobiologia, professora e pesquisadora na Faculdade de Farmácia da UFRGS desde 1992. Fotógrafa diletante, participou de várias exposições coletivas com as Escolas de Fotografia Projeto Contato e Câmera Viajante. Foi aluna da Oficina de Escrita Criativa da PUCRS, ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil. Frequentou também oficinas literárias de Luis Augusto Fischer, Charles Kieffer e Ana Mello e foi aluna do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose. Publicou o livro Queda Livre, finalista do Prêmio AGES de Literatura.



Em 2020, Stela Rates foi incluída na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo. Seu nome está dentro dos 2% de pesquisadores mais citados em seus campos de conhecimento — no seu caso, Farmácia e Farmacologia —, em um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade de Stanford (UK) e publicado na revista científica PLOSBio.

Através das suas experiências, Stela deixa aqui reflexões e dicas importantes para quem deseja investir na carreira acadêmica, sem deixar a carreira de escritor de lado. E ela vai além, inspirando pela força e resiliência, a não desistirmos dos nossos objetivos e do caminho que escolhemos para seguir.

Confira a entrevista na íntegra:

Quais as competências que você desenvolveu na sua (sólida) carreira acadêmica que ajudam na sua escrita?

A carreira acadêmica pressupõe escrever. Na graduação, não precisei escrever muito, isso era pouco exigido. Mas, depois, em nível de pós-graduação, vieram monografia de conclusão de curso de especialização, dissertação de mestrado, tese de doutorado, resumos para congressos, artigos. Mais adiante, já pesquisadora consolidada, segue e se intensifica a escrita de artigos e acontecem os capítulos de livros, as orientações de trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses, onde a gente precisa ajudar o aluno na construção de sua própria escrita. A gente escreve o tempo todo e começa só com aquele português básico de colégio que, no meu caso e tempo, não tinha muito espaço para o aprendizado da escrita argumentativa, fundamental na escrita científica. Então, eu te diria que a gente aprende fazendo. Certamente, eu desenvolvi a habilidade de argumentar. Mas não tenho muita clareza se essa trajetória contribuiu para a minha escrita criativa, literária. Os artigos podem até ter atrapalhado um pouco porque, na minha área, a maioria dos textos científicos que a gente escreve é em língua inglesa e nosso pensamento acaba seguindo um pouco a lógica da gramática inglesa, americana, especialmente, com léxico e formato limitados, já que não é nossa língua mãe. De todo modo, a facilidade e o prazer em escrever me acompanham desde sempre, me saía muito bem nas tarefas de redação no colégio e escrevia longas cartas aos meus amigos. Certamente, está aí o embrião de minha escrita criativa. Mas, talvez, haja mais intersecção entre minha escrita acadêmica e literária do que eu possa supor. Penso isso quando lembro que na defesa de minha tese de doutorado um membro (feminino) da banca disse que minha tese estava muito bem escrita, ela a tinha lido com prazer, como se ela fosse um romance.

E vice-versa, como a sua experiência em oficinas literárias e como escritora te ajudam a escrever artigos acadêmicos e a atuar em pesquisa?

Se alguém tivesse me dito que aconteceria, eu teria duvidado. Mas o fato é que minha experiência em oficinas literárias contribuiu muito para melhorar minha escrita científica e, também, a forma de ler e corrigir os textos dos meus alunos. Me tornei menos prolixa no meu texto e mais respeitosa com o texto dos outros. Passei a buscar a concisão. Claro que é uma concisão diferente daquela que busco na escrita literária. A concisão na literatura, no conto especialmente, que é o meu formato, não pode prescindir da polissemia, do efeito, da beleza. Sei, nem todo texto literário precisa ser conciso. Mas eu gosto do texto pouco adjetivado, preciso. E trouxe um pouco disso para a escrita científica que, por óbvio, não deve ser polissêmica como a literatura, deve ser inequívoca no sentido que dá, mas pode igualmente se beneficiar da concisão para prender o seu leitor e dizer exatamente o que deve ser dito, nem mais, nem menos, e causar impacto. Segue sendo um exercício, porque eu sempre acho que tenho muito a dizer. Também aprendi a ser humilde com meu texto, aceitar críticas e sugestões, sem deixar de defendê-lo quando acredito nele. Com as oficinas literárias, compreendi que um texto só se completa quando é lido, quando faz sentido para alguém. E isso vale do mesmo modo para o texto acadêmico.

Você é uma referência na sua área de atuação com artigos e trabalhos publicados. Qual é o papel dessas publicações neste contexto?

Você diz que sou uma referência, mas é difícil a gente ter a exata dimensão do quanto somos ou podemos ser referência para alguém ou para uma comunidade. Uma medida objetiva do quanto o que publicamos nos torna referência é o quanto eles são lidos e citados, e existem índices e rankings que tentam dar conta dessa medida. Contudo, penso que esses índices são apenas um entre tantos parâmetros que devemos considerar. Artigos e textos científicos/acadêmicos têm, por definição, o dever de contribuir para a construção do conhecimento em uma determinada área. Se não contribuem, não fazem sentido. Tenho a pretensão de que minhas publicações tenham contribuído para reflexões importantes sobre a utilização de produtos naturais, plantas em particular, como recursos terapêuticos, quer seja diretamente ou como matéria-prima para o desenvolvimento de novos medicamentos. Acho que também aportei elementos significativos para a identificação de potenciais protótipos de fármacos psicoativos no país. Mas, é importante pontuar que a produção intelectual de um pesquisador não é um trabalho solo. É fruto de trabalho em equipe, acaba por ser sempre a produção de um grupo. Além disso, é preciso dizer que nenhum pesquisador-professor existe sem seus alunos. Os alunos (de pós-graduação, em especial) têm um papel fundamental na produção de ciência no Brasil. É sobretudo através deles, e por eles, que nos tornamos referência.

Você tem alguma dica para quem deseja seguir por este caminho acadêmico?

Não há nada de profundamente especial. Como em qualquer ofício, penso que os primeiros requisitos para ser feliz na carreira acadêmica são o querer (a tal vocação) e o gostar do que se faz. É necessário ter desejo e disponibilidade para aprender continuamente, a mente aberta para o novo e para a dúvida. O resto é dedicação e trabalho diário. Para os estudantes de graduação que sentem o desejo de seguir uma trajetória acadêmico-científica, é importante exercer atividades de monitoria e/ou iniciação científica durante o tempo de faculdade. Conhecimento da língua inglesa, pelo menos nas ciências da vida e da saúde, é essencial. Por fim, é preciso saber — ou aprender — a trabalhar em equipe e ter — ou desenvolver — habilidade para sobreviver em um universo muito competitivo. Resiliência ajuda!

Há espaço para a escrita criativa em um texto acadêmico? Você poderia nos dar um exemplo?

Acho que sim. Não é simples, pelo menos não na área biomédica. Mas há brechas que a gente pode buscar. Na minha prática docente, eu uso a escrita criativa quando monto casos clínicos para os alunos resolverem. São histórias baseadas em fatos reais, mas bastante “ficcionadas”. Uma outra possibilidade é trabalhar a escrita criativa com o propósito de fazer divulgação científica, na forma de ensaios, crônicas e até ficção. Por exemplo, escrever histórias para crianças que contêm fatos científicos ou formas de cuidado com a saúde.

Você é uma leitora de literatura, ficção? De que forma isso ajuda você na escrita acadêmica?

Sim, sou uma leitora voraz de contos e romances. Mas nunca parei para pensar se isso ajuda na minha escrita acadêmica. Certamente, ajuda muito na minha prática docente, trago exemplos da literatura para a sala de aula, ótimos para ilustrar — de forma lúdica e atraente — determinados fenômenos biológicos ou efeito de drogas/medicamentos. Deve ajudar na escrita acadêmica também, mesmo que eu não tenha muita consciência disso. Penso que a literatura me dá uma riqueza de recursos semânticos que acabo utilizando nos textos acadêmicos. De todo modo, em qualquer situação, para qualquer pessoa, ler é condição para se escrever melhor.

Como mulher, não posso deixar passar a oportunidade de falar sobre este assunto contigo. Você, pela sua trajetória profissional — pesquisadora, professora e referência na sua área — e pessoal — mãe de dois filhos, esposa e agora avó —, mostra que é possível conciliar todos os papéis que você abraçou na sua vida. Como foi este processo e qual é a sua “fórmula” para que todas essas realizações fossem possíveis?

Conciliar estudo, trabalho, crescimento e satisfação profissional e pessoal com a maternidade não é, como se sabe, algo banal em uma sociedade com a nossa. E os tempos já foram piores. Quando meus filhos nasceram, eu estava fazendo o mestrado, desenvolvendo experimentos em um laboratório químico, e não recebi nenhum tipo de proteção ou licença, nem durante as gestações, nem nos primeiros meses dos meus bebês. Eles tinham em torno de vinte dias quando eu retornei ao laboratório e às salas de aula. Com dois meses de idade, meu primeiro filho já estava em uma creche. Hoje, felizmente, as pós-graduandas têm direito à licença maternidade de quatro meses, com manutenção e prorrogação da bolsa por igual período, além da possibilidade de afastamento das atividades de laboratório quando essa incorrerem em riscos à gravidez e/ou ao feto. Recentemente, as pesquisadoras conquistaram espaço para registro de licença maternidade em seus currículos na Base Lattes, e algumas agências de fomento já levam em consideração o primeiro ano após o parto para justificar uma eventual queda de produção científica. 

Acho que eu segurei a onda porque fui mãe jovem e sou constituída de uma energia vital poderosa. Além disso, o pai dos meus filhos sempre foi presente, amoroso e comprometido com a sua paternidade. Tive também o auxílio precioso de uma senhora que trabalhou por vinte anos comigo, auxiliando nas tarefas domésticas e nos cuidados com as crianças de forma muito afetuosa. A presença de minha mãe foi outro aporte fundamental. Mesmo morando em outra cidade, ela esteve presente em momentos cruciais, como os puerpérios e os períodos em que precisei ficar longe dos meus filhos para investir na minha formação.

Não há fórmulas, a vida é feita para ser vivida. Eu construí minha trajetória na medida do meu possível. Renunciei a algumas coisas, me frustrei com outras tantas, alterei rotas quando caminhos me foram interditados. Talvez, eu pudesse ter ido mais longe na minha carreira ou ter alcançado mais rapidamente determinados patamares, ter feito literatura antes, se eu não tivesse sido mãe. Talvez, a vida tivesse sido mais leve para meus filhos se eu não trabalhasse tanto. Mas as duas coisas são essenciais para mim — a maternidade e a carreira — e eu quis ser mãe ainda jovem. Aceitei o que se apresentou à minha frente e segui com os apoios que pude contar. Crescemos todos, e sei que meus filhos se sentem muito amados por mim. Eu não gosto do conceito, do rótulo de mulher guerreira. Não deveria ser uma guerra. Ser mãe e realizar-se profissionalmente ao mesmo tempo é um direito. Mas o fato é que exige estrutura (externa e interna) e força. E eu herdei força.

Cresci numa família de mulheres fortes, minha mãe e minhas tias maternas são referências para mim. Por conta da profissão de caminhoneiro de meu pai, eu e minhas irmãs passávamos a maior parte do tempo sozinhas com nossa mãe, e ela se virava para além das tarefas domésticas. Além disso, ela ficou viúva muito cedo, quando eu tinha treze anos. Sou a terceira filha de quatro e tivemos que dar conta disso, começamos a trabalhar muito cedo. Mas nosso pai é um farol em nossas vidas, um homem que respeitava as mulheres, num tempo em que isso pouco era falado. Nenhuma de nós foi a princesa do papai. Éramos incentivadas a estudar e, além de brincar de bonecas, nos envolvíamos com ele em brincadeiras e tarefas que poderiam ser consideradas masculinas à época, como acompanhar em pequenas viagens de transporte de cargas, enrolar a lona do caminhão, jogar dominó, tomar banho de rio. Ele, por sua vez, em situações de doença de minha mãe, assumiu tarefas consideradas femininas em casa, com tranquilidade. Assim, posso dizer que, a despeito do sofrimento e das dificuldades resultantes da morte de meu pai, cresci cercada de amor, numa família estruturada e sem papéis estereotipados de homem e mulher. Penso que isso me deu suporte e permeou minhas escolhas.

Uma outra coisa que me parece fundamental, olhando retrospectivamente e pensando nas discussões em voga na sociedade agora, é que nenhum lugar me foi negado, minha inteligência e vocação foram respeitadas, tiveram espaço para se desenvolver. Houve quem me disse “existe um lugar que te pertence: a Universidade Federal do Rio Grande do Sul”. Poderia ter sido diferente, né?! Eu era uma menina interiorana, de classe média baixa, estudante de escola pública, que ficou órfã de pai no início da adolescência. Poderiam ter me apresentado o caminho do casamento e da maternidade, ou de um trabalho que me exigisse uma trajetória menos árdua, como únicas perspectivas de uma vida boa e digna. Só que não. Minha família e meus professores fizeram diferente. Disseram “vai”. E eu vim. E aqui estou, inteira, para dizer às minhas alunas, à minha filha e à minha neta: vão!

Qual é o espaço dessa voz feminina na sua escrita? Você enxerga suas experiências como mulher — em todas as esferas — falando através dos seus textos?

Acho que até aqui não são especificamente minhas experiências como mulher que têm voz preponderante na minha literatura. Elas estão presentes em um outro conto, a complexidade e a delicadeza da relação entre mãe e filha, o enfrentamento com o amadurecimento e senescência do corpo e do amor. Mas o mote principal do que publiquei até agora tem mais relação com as dores humanas (expressas até na improvável voz de um cão) que perpassam qualquer gênero, as infâncias e mentes atingidas por lutos, abandonos, abusos e doenças. Tudo isso me toca muito, é universal e precisa ser exposto.

Em 2018, você publicou um livro individual pela Metamorfose — Queda Livre, que, inclusive, foi indicado para o Prêmio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), na categoria narrativas curtas, além de ter publicado duas coletâneas com outros autores: Minicontos de Amor e Morte (2018) e Desamordaçados (2009). Quais são seus objetivos como escritora a partir de agora?

O meu objetivo é seguir escrevendo e publicando, quero me consolidar como contista. Sobretudo, desejo ser lida. Quero atingir um público maior. Me sinto motivada pela indicação do “Queda Livre” ao prêmio AGES, em 2019. Foi muito mais do que eu poderia esperar para um livro que, simplesmente pelo fato de ter sido escrito e publicado em paralelo a uma intensa atividade profissional fora do meio literário, já me realizou muito. Estamos, eu e o Marcelo Spalding, combinando uma reimpressão revisada para breve. Tenho também outro livro em preparação, quase pronto, na verdade. E esse, sim, se constitui num livro de contos que dão voz explicitamente à condição de mulher, a mulher e seu corpo, o que os constitui e machuca. Vai ser forte, mas sem perder o lirismo que, dizem, marca minha escrita. Aguardem!

 

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